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sábado, 7 de março de 2015

Da velha à nova família

Da velha à nova família

As formações familiares são profundamente influenciadas por velhos costumes e, portanto, hábitos dos séculos passados deixam traços nas atuais famílias "pós-modernas". No século XVII, dois fatores despertam especial atenção, um quanto ao poder patriarcal nas uniões e o outro quanto aos primogênitos. O poder patriarcal era definidor quanto às intencionalidades das uniões, pois "quando se tratava de casamento, ninguém pensava em contestar o poder dos pais nessa questão". Os casamentos arranjados continuavam a ser uma forma de manutenção e expansão patrimonial. Entretanto uma alteração fundamental se instalou nessa "lógica econômica", que consistiu no fim da exclusividade dos bens dirigidos aos primogênitos e, consequentemente, incentivo aos filhos mais novos. Tal mudança causou indignação social e veio acompanhada por outras mudanças socioeconômicas.

No final do século XVII, a privacidade ainda era rara. As casas eram como grandes galpões, e essa ausência de delimitações fazia com que todas as coisas ficassem juntas, tudo se passava nos mesmos cômodos em que todosviviam com sua família. Aos poucos, alguns detalhes se modificaram, como as camas desmontáveis, que passaram a ser fixas e ganharam cortinas. Contudo, o cômodo onde ficava a cama nem por isso passou a ser um quarto de dormir, continuava a ser um local público, onde transitavam e dormiam mais pessoas além da família nuclear (pai, mãe, filhos e parentes próximos).  As mudanças continuam e se intensificam nos séculos seguintes, a família se torna mais fechada (nuclear) e sentimental, ao contrário do modelo anterior, que era mais funcional. As delimitações dos cômodos expõem uma conjunção de influências socioeconômicas da Europa e, dentre as aspirações de civilidade, a gradual passagem dos temas referentes ao corpo e sexualidade da igreja aos médicos.

O forte movimento industrial e a urbanização demandavam e justificavam a "normalização dos hábitos". Nas famílias proletárias, em meados do século XIX, as campanhas e as ideias veiculadas entre as camadas mais "baixas" eram diferentes das voltadas às camadas mais "altas" e focalizavam o controle da natalidade e a interdição à livre união. Tais preocupações com o proletariado diferiam de cem anos antes, quando as famílias pobres estavam profundamente aderidas às práticas matrimoniais e havia uma "natural-religiosa" restrição à quantidade de filhos. Então, o que poderia estar se sucedendo é que o casamento estava ligado à vida comunitária das aldeias e aos modos aceitos para as transições patrimoniais. Por outro lado, com o incremento do proletariado urbano, os motivos que sustentavam as uniões e o controle da natalidade desapareceram. E, juntamente com a urbanização, as flutuações econômicas e as novas frentes de trabalho demandavam uma população igualmente flutuante e os casamentos decalcaram essa lógica.
Portanto, urbanização consolidou a organização dos movimentos sociais, e esse modus vivendi de total desapego se mostrou perigoso ao Estado, que iniciou campanhas reforçando o valor da estabilidade, do casamento, de quartos separados, de sexos separados, de camas individuais, de famílias em casas separadas com no mínimo dois quartos, etc.. Em síntese, do século XVII (da família permeada pela sociedade e essa fonte de uma elevada pressão, na qual a criança era instrumento a ser modelado para o avanço familiar) até o século XIX (o isolamento e o resguardo familiar da invasão e da pressão social), nota-se a transformação dos preceitos morais, como incremento da privacidade, polimento dos hábitos sociais, surgimento dos manuais de civilidade e melhoria das condições de higiene. A casa/família perdeu o seu caráter de lugar público, e, não sem motivo, que justamente nessa época surgiram os clubes e cafés (os PUBs - public houses). A vida profissional e a vida familiar foram progressivamente delimitadas.
No início do século XX, houve uma nova transição de valores, no pós II Guerra com a emancipação sexual e econômica da mulher e na década de 70 com o movimento estudantil e a reedição da liberação da mulher (pílula). Esses novos valores colidem com forças histórico culturais. Forças paradoxais de emancipação e reclusão se fazem presentes no final do século XX: a família resguardada, mas não mais nuclear, pois o marido e a mulher estão fora de casa trabalhando e terceiros fazem as vezes domésticas; e a moradia, embora mais fechada, se abre para as mudanças da empregabilidade (terceirização, serviços e terceiro setor), que reeditam, em alusão ao século XVII, a casa como local de trabalho, e, contraditoriamente a casa/família se rende à violência urbana, fechando-se. Esse novo "isolamento" da casa/família pode ser notado pelos aparatos cotidianos: a) o cuidado com quem adentra a residência ou o condomínio (burgo), cercas, sistemas de vigilância, porteiros, interfones, câmaras, etc. b) a transformação da casa em unidade autônoma como local de lazer e trabalho, com a implementação das diversas utilidades comunicacionais e domésticas (internet, televisão, home theater, piscina, churrasqueira, salão de festas) e dos estoques de comida (freezer).
A família pós-moderna que está se emancipando de tantos traços dos últimos séculos, ao tentar se defender das pressões e mazelas sociais, investe seus esforços para que a casa assuma funções seculares, como resguardo (privado) e trabalho (público). A diferença em relação aos séculos passados reside em alguns elementos como abertura das relações e menores idealização e resignação frente ao destino, que podem ser notadas na ampliação da capacidade de se permitir fazer escolhas.

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